Disclaimer: o texto abaixo é composto por histórias verdadeiras e temas muito complexos tratados de uma maneira simplificada
Há poucos meses atrás conversei com uma founder que estava inconformada com o comportamento de algumas pessoas do seu time.
“Foi tão difícil chegar onde cheguei, fundar uma empresa bacana, que trata bem seus clientes e colaboradores, que se preocupa em incluir minorias e dar chance para pessoas que nunca trabalharam. Mas… parece que as pessoas esquecem a contribuição que damos para elas e reclamam, reclamam, reclamam… não valorizam o que temos aqui.
Quando eu penso na minha história, comecei a trabalhar cedo ajudando o pessoal da vizinhança. Sempre com tino para negócio e querendo ajudar as pessoas.
Morávamos em um bairro muito humilde e o dinheiro era contado.
Engravidei aos 16 anos. Continuei na escola, mesmo grávida. Minha filha nasceu, eu a levava comigo às aulas. Quando ela cresceu um pouco, mudei minha aula para horário noturno para trabalhar de dia e minha mãe ficava com ela à noite. A faculdade foi na mesma pegada.
Finalmente, consegui trabalho de recepcionista, 1 ano depois, achavam que eu tinha jeito para o comercial, fui para assistente da área e 10 anos depois eu assumi a posição de Diretora Comercial na mesma empresa.
Minhas aspirações foram aumentando conforme eu fui conquistando responsabilidades que nem sabia que existiam. Como não pude fazer horas extras durante muito tempo em função dos estudos, eu fui criando formas mais produtivas de administrar meus clientes e minhas vendas e foi com esse mindset que criei a solução que é o produto chefe da empresa que tenho hoje.
Muitas pessoas não me deram emprego no início da minha carreira, assumiram que eu faltaria o emprego por causa da minha filha ou que, pela falta de experiência em empresas maiores, eu não conseguiria pegar o serviço. Na minha empresa isso não acontece, todos os meus líderes são incentivados a dar oportunidade de trabalho para pessoas inexperientes mas esforçadas, ou, para grupos de minorias que, às vezes, a única coisa que precisam é de uma chance.”
Claro que resumi bastante o conteúdo da conversa, mesmo assim, vocês percebem como a jornada dessa founder é a típica jornada do herói, de Campbell?
Por que será que, mesmo sendo “um herói” que parece ser bem sucedido na sua jornada pessoal e profissional, ela ainda está queixosa?
Esse discurso é, infelizmente, muito comum: “eu faço, faço, faço e nunca está bom para os outros” ou “eu faço, faço, faço e parece que nunca é o suficiente para mim”.
Nas minhas pesquisas internas e externas sobre esse tipo de satisfação, entendi que, a melhor jornada para nós mulheres, não é a jornada do herói, não é o lugar de “salvadora da pátria” pois esse lugar é caracterizado por comportamentos mais masculinos: o herói faz o bem, o herói não interage, não se relaciona. Ele vence. Ele luta sozinho. Ele gosta de ser o centro. Ele tem poder sobre o outro.
A Jornada que pode nos levar a um lugar de contemplação de quem somos é a Jornada da Heroína, descrita por Maureen Murdock. Você já conhece essa linda (e desafiadora) trilha?
Pois é, a Jornada da Heroína tem 12 etapas. Sim, isso tudo.
Dedicarei esse post a comentar sobre algumas delas, menos como expert técnica, mas com uma perspectiva (potencialmente falha) da minha vivência.
A 1a etapa é a SEPARAÇÃO DO FEMININO.
Nossa sociedade é androcêntrica, percebe o mundo a partir da perspectiva masculina. Até aí, zero novidade, mas o que virá a partir de agora pode ser diferente do que estás acostumada a refletir, mas me dá uma chance e continue lendo, por favor.
Você já considerou a ideia de que a desvalorização das mulheres começa com as filhas desvalorizando as mães? Estamos vendo que, atualmente, homens e mulheres vêm questionando o pensamento patriarcal, principalmente, em estruturas políticas, econômicas e educacionais. Entretanto, em uma perspectiva mais emocional, os valores patriarcais estão, primeiramente, relacionados na interação da filha com a mãe, na maneira como ela percebe a sua mãe. Você já deve ter escutado a crença popular de que as meninas são mais apegadas aos pais do que às mães. Freud falava que as meninas se apaixonam pelos pais e que a mãe passa a ser tratada com animosidade, como se fosse uma inimiga.
A primeira tarefa da heroína em direção à individuação é afastar-se da mãe. Pois a sua mãe passa a ser uma representação de algo que a heroína não quer ser, não quer perpetuar mais na sociedade. Várias mulheres enfrentam o processo de distanciamento do poder da mãe sobre elas criando uma espécie de rejeição a algumas características da sua mãe e atribuindo a ela adjetivos como submissa, manipuladora, egoísta, passiva, sedutora, inconsequente, entre tantas outras possibilidades.
Quanto mais a mãe representar o contexto de que o sexo feminino é inferior dentro da nossa sociedade, mais iremos procurar nos afastar (emocionalmente) dela.
Sei que essas afirmações podem causar desconforto, então, antecipo que conforme formos avançando nas outras etapas, iremos descobrir que os sentimentos de inadequação ou de impossibilidade de ser quem se quer ser que a heroína possui, não estão relacionados com a sua mãe, ela apenas precisou usar a sua mãe como responsável por suas frustrações, baixa autoestima, precisou projetar na sua mãe pois não conseguia encarar a sua própria onipotência. Foi mais fácil ter raiva da mãe do que de si mesma.
Eu me lembro de ter vivido a 1a etapa ainda na minha infância. Eu achava o máximo a minha mãe saindo toda arrumada para trabalhar, mas eu tinha muita raiva dela quanto não conseguia vir almoçar em casa, ou quando não conseguia falar comigo no telefone por estar em reunião e eu precisava loucamente contar para ela o que tinha acontecido na escola e não queria esperar até de noite. Mimada, eu? Pode ser. Eu acredito que as meninas querem ver suas mães triunfando na vida, assim como, querem a mesma mãe passando o dia em casa com elas.
Na infância eu quase não brinquei de boneca. Tenho poucas lembranças minhas agindo de maneira espontânea a partir de valores femininos. Antes dos 10 anos eu participava dos campeonatos de canastra da minha família e esses eram os pontos altos das minhas férias. Minha mãe sempre me incentivou a ser independente financeiramente, a construir carreira e prosperar por conta própria. Infelizmente, o que eu entendi com isso é que eu deveria construir uma realidade na qual eu fosse Independente (com I maiúsculo), uma resolvedora de problemas ambulante (dos meus problemas e problemas dos outros).
Acordei comigo mesma que eu gostava de autonomia, essa era a minha melhor forma de “operar” e que a partir daquele momento deveria focar em conquistar esse lugar.
Cheguei rapidinho na 2a etapa, na IDENTIFICAÇÃO COM O MASCULINO. Quantas empreendedoras você conhece que eram “CDFs”, que tiravam nota alta na escola, que eram líderes de turma, que se destacavam em alguma (ou várias disciplinas)? Muitas, aposto. As histórias da infância de muitas founders que eu conheço são marcadas por crianças que entregavam os resultados esperados, nesse contexto estamos falando de notas altas, campeonatos esportivos, até mesmo espetáculos de dança, que parecem ser experiências mais sensíveis, foram vividas como performance a serem obtidas.
A aproximação e identificação com o pai, o lugar renomado de “filha do meu pai”, ajuda a menina a ver o mundo através dos olhos masculinos do seu pai. A procura pela aprovação paterna coloca em xeque diversos comportamentos femininos e a menina passa a ter uma interação harmoniosa com as suas energias masculinas e parece que a vida fica mais fácil, que ela é mais aceita, mais competente.
Eu acompanho análises superficiais sobre a valorização da energia masculina no trabalho que desconsidera que esse cenário é uma “apenas” a continuidade do apreço pelo vencer, pelo se destacar, pela mentalidade binária de que o 2o lugar é o 1o perdedor vivida por essa pessoa, muitas vezes dentro da sua casa, da sua sala de aula, da piscina da aula de natação.
As mulheres já chegam no ambiente de trabalho identificadas com os comportamentos masculinos, provavelmente, o que a levou a escolher o ambiente corporativo ou empreendedor foi a identificação.
Serei polêmica aqui, mas preciso me posicionar, qualquer programa de diversidade para inclusão de gênero nas organizações já chegou tarde, ele deveria ter sido iniciado na preparação dos educadores que cuidam das crianças no berçário. Temos esses programas na Astella, eles são importantes, mas sabemos que eles não resolverão a causa raiz.
Vou pular para a 4a etapa, A ILUSÃO DO SUCESSO. A founder protagonista da narrativa do início do post estava tomando conhecimento sobre esse momento da sua jornada. Ela estava vivendo o amargor de perceber que foi mãe (check!), se casou (check!), fez faculdade (check!), prosperou profissionalmente (check!), fundou minha empresa (check!), sente-se realizada (não check!).
Como assim?? Não check?? A founder concluiu que ela fez muito, fez coisas relevantes ancoradas pelos seus valores, contribuiu com o ecossistema, mas… quando olha para dentro de si mesma, parece que mora em uma casa vazia, não tem intimidade, não tem tempo na agenda para fazer o que gosta, aliás, ela não sabe do que gosta.
“Me tornei uma mulher forte, mas não tenho ninguém para me acolher e não sei ou não lembro como acolher e mim mesma.” - Maureen Murdock
Essa querida founder está em uma das fases mais doloridas da jornada da heroína, perceber que o que ela passou a vida toda tendo como conceito de “sucesso” não a completa. Mas ela ainda não sabe qual é o conceito de sucesso que a completará. Temos uma mulher que quando estava prestes a “chegar lá”, percebeu que em alguma etapa do caminho, há muito tempo atrás, entrou na rua errada. Ela vai precisar escolher se vai aprofundar em si mesma, mesmo com o sofrimento que isso pode causar, ou se vai “fingir” que não percebeu o desencaixe, mesmo com o sofrimento que isso pode causar.
Essa founder é uma adulta, cheia de recursos internos e externos, passará um bom tempo para responder a pergunta: quem sou eu? Passará noites acordada refletindo sobre seu verdadeiro propósito. Dirigirá seu carro ouvindo música da época que era adolescente, lembrando saudosa de quem ela já foi, alguns dias chegará a se emocionar a ponto de chorar no trajeto para o trabalho. Assim que chegar na sua startup, ela vai enxugar as lágrimas, vai colocar o sorriso no rosto e vai fazer o que a empresa precisa que ela faça. Quase ninguém perceberá a crise existencial pela qual ela está passando.
A heroína aprendeu a ter um bom desempenho, quando sente um desconforto, trata isso como um obstáculo a ser vencido. Ela se alimenta dos elogios que recebe a cada conquista. O vazio gerado pela falta de sentido que ela vê na conquista alcançada, vai ser “tampado” com o sucesso de algum novo projeto and so the stories go.
Jung afirmava que o processo criativo de uma mulher só se concretizará na sua plenitude quando ela parar de imitar, inconscientemente, os homens. Enquanto o masculino inconsciente estiver no comando, a mulher NUNCA se sentirá suficiente.
Muitas founders estão sacrificando grande parte da sua alma em nome de realizações. Mas um dia ela se dá conta disso, a heroína pode levar um tempo para ter coragem de admitir para si mesma que o papel de “guerreira infalível” não lhe cai bem, vai demorar ainda mais um pouquinho para ter coragem de contar isso para as pessoas que a consideram uma rocha.
Chega um lindo momento, no qual ela percebe que não é infalível, mas é suficiente. Então, ela se sente pronta para pedir ajuda e ajusta a sua maneira de liderar sua empresa, seu time, a si mesma, e, retoma a sua Jornada da Heroína.
CONTINUA.
Que texto necessário! Utilidade pública.